Estava eu a reler os sermões do Padre António Vieira, preparando-me para escrever umas palavras sobre Miguel, o pregador, enérgica estrela da oratória 2.0 – ouvida nos púlpitos digitais por milhares de fãs rendidos ao discurso simples e de senso comum, onde os vês são trocados por tonitruantes e nortenhos bês – quando o assunto, Miguel, o pregador, foi abruptamente substituído por Miguel, o ex-ministro.
A sequência dos acontecimentos parece ter sido esta: Miguel, o pregador, foi convidado por Miguel, o então ministro, para pregar esperança e ânimo aos milhares de jovens que mandam currículos às pazadas para empresários e empresas que, por sua vez, os despejam às pazadas para o lixo.
A razão, segundo o pregador, está na forma passiva e sem proposta de valor com que os jovens se apresentam. Eu diria que a razão está sobretudo na política que promove o desemprego, o desespero e o mirrar da economia. Os empresários e as empresas que atiram os currículos para o cesto dos papéis atiram também trabalhadores às pazadas para o desemprego. Mas adiante…
O então ministro Miguel tropeçou num vídeo de Miguel, o pregador, no YouTube e, contagiado pela energia da pregação, convidou-o para embaixador do programa Impulso Jovem – um programa que tem por objectivo ajudar jovens à procura de emprego. Um par de dias depois, ainda sob o efeito da pregação, o ministro demitiu-se.
A ideia de contratar o pregador Miguel indicia já o desespero e a descrença do ex-ministro Miguel nas soluções mais mundanas da política e da governação. O ex-ministro percebeu que só convocando, com muita fé, a energia do cosmos se consegue resolver o mal de Portugal. Nada mais resta, não há outro caminho: Miguel, o ex-ministro, percebeu que isto só lá vai com pregação. E terá percebido mais: isto não vai lá com gente desta – que é o mesmo que dizer, ele próprio.
Estou mesmo convencido que a demissão de Miguel Relvas é obra que resulta das palavras do pregador que o terá feito ver o erro das suas maneiras. Com a ajuda do grande Padre António Vieira, explico-me melhor. No “Sermão da Sexagésima”, o pregador jesuíta conclui a sua prédica sobre as virtudes e os defeitos dos pregadores dando conta de uma disputa entre doutores de Coimbra sobre qual de dois pregadores era o melhor. Lê-se: “Mas um lente, que entre os mais tinha maior autoridade, concluiu desta maneira: ‘Entre dois sujeitos tão grandes não me atrevo a interpor juízo; só direi uma diferença, que sempre experimento: quando ouço um, saio do sermão muito contente do pregador; quando ouço outro, saio muito descontente de mim.'”
Miguel, o ex-ministro, depois de ter visto o vídeo motivacional de Miguel, o pregador, perdeu o ânimo, acossado que estava por um passado que, como é normal com o passado, não larga nem descola por mais que o tentemos ignorar. Assim, Relvas, muito descontente de si, obviamente demitiu-se.
Publicitário, psicossociólogo e autor
Escreve à sexta-feira
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Com a mesma lucidez mas com mais humor a crítica de Ricardo Araújo Pereira
e de Bruno Nogueira
Para quem nunca ouviu o outro Miguel, o Miguel Gonçalves, pode ouvi-lo aqui e aqui “a bater punho”!
O homem que fala de empreendedorismo faz palestras, jogos de teambuilding, e sessões de brainstorming. Na realidade o emprego dele é vender banha da cobra… até porque ele, empreendedor autosuficiente, teve que se encostar ao governo…